terça-feira, 30 de março de 2010

Sonho

               ''Duas horas da manhã e ela já não queria estar ali''. Ao ler essa frase, jogou o livro para o lado, com irritação. Ele era assim, se não gostava da primeira frase de um livro, não se dava ao trabalho de ler o resto. Estava sozinho em casa, procurando por algo para fazer, sem sucesso. Havia até mesmo tentado ler o último livro da moda, mas o detestou. Seus pais estavam fora, haviam ido num jantar ou algo assim. Não prestara atenção no que eles haviam dito. É claro, estava apenas retribuindo o favor.
                 Sua gata havia morrido um mês antes, então sua única companhia eram os ruídos estranhos vindos das partes mais remotas do apartamento. Normalmente mataria tempo desenhando e caminhando de um lado para o outro no apartamento, porém naquela noite não. Não conseguia mais fazer isso, depois do que havia visto meses antes. Se levantou do sofá e observou a estante cheia de livros. Já havia lido a maioria, menos algumas coletâneas do Edgar Allan Poe, e aquela não era a hora para elas. Resolveu ir a seu quarto tentar dormir.
                Chegou à porta do quarto e a abriu. A gata saiu do quarto, passando rápido pelas pernas do garoto. Entrou e sentou-se na cama. Viu o computador ligado mas não quis usá-lo. O monitor era a única fonte de luz do pequeno aposento. Era uma noite sem lua, sem estrelas, por isso nem mesmo da janela aberta vinha alguma iluminação. Ouviu o som de uma porta abrindo e logo depois fechando, seguido pelo ruído de passos lentos. "Meus pais devem ter chegado", pensou. Mas estava silencioso demais. "Minha mãe deve ter dormido no carro e meu pai está carregando ela", se enganava o garoto,''por isso os passos estão lentos''. As passadas começaram a aproximar-se do quarto. Seus pais não dormiam para aquele lado. ''Talvez eles só queiram me dar boa noite'', o guri tentava se fazer acreditar, porém eles nunca faziam isso. De todas as maneiras possíveis ele tentava fingir não saber quem realmente era. Ele não queria saber. Continuou sentado na cama, tremendo, observando ansioso o corredor escuro. Deixou a porta aberta, um pouco por teimosia, um pouco por medo de sair do lugar. Os passos continuavam num ritmo lento, arrastado.
                A espera era agonizante. Então surgiu em frente ao quarto uma figura de uma mulher. Ruiva, usando um vestido branco do século passado. Em seu rosto se via uma expressão que ao mesmo tempo beirava o terror e mostrava indiferença. Sua pele era tão branca quanto o vestido, os cabelos contrastavam com o rosto de maneira bizarra, eram de um vermelho claro que de alguma maneira lembrava sangue. Seus olhos esbugalhados, aterrorizados, hipnotizadores, tão escuros quanto a escuridão do corredor. Ela olhou-o por um momento que pareceu se arrastar por horas de forma torturante, os dois se fitaram sob a luz fraca do monitor. Ela então se voltou para frente e continuou caminhando, da mesma forma demorada e ritmada, até o som de seus passos sumirem dentro do apartamento.
             O garoto, ainda tremendo, só tomou coragem para levantar cerca de uma hora depois. Ligou a luz, fechou a porta, lamentando não ter feito isso antes, e se deitou na cama. "Foi só um sonho", repetia para si mesmo em voz alta, "assim como da outra vez".
            "Foi só um sonho".



-André Arieta-