terça-feira, 23 de março de 2010

Pablo

              Gostava de se arranhar durante o banho.
              Sua vida vinha sendo perfeita. Amigos, dinheiro, amor e um pouco de hipocrisia.

              Era começo de estação. Outono se não me engano. Naquela noite, foi tomar banho mais cedo. Abriu a gaveta do criado-mudo e retirou uma navalha. Precisava ver como era se depilar com navalha, estava querendo isso desde o verão.Desde o dia anterior, melhor dizendo. Não tinha muita prática com navalhas, pois só usava-as quando ia cortar os cabelos já quase extintos da cabeça.
              Enfim, tomou coragem. Passou a navalha na perna esquerda. Uma legião de pêlos caiu sobre o chão branco. Depois se deu conta que o sabonete tinha acabado. Continuou mesmo assim, sem sabonete. Raspou a outra perna, os braços, a barriga e até entre os seios. Mas ainda faltava a virilha.
              Teve medo. Começou a imaginar que poderia morrer, certo que seria uma morte perfeita, mas isso estava fora de cogitação. Mesmo assim, viu-se no chão, toda ensanguentada.
             Encarou o medo. Gostava de aventuras. Passou cuidadosamente a lâmina na virilha. Tivera sido mais fácil do que imaginara. Então, seguiu o "ritual": passou xampu nos poucos fios de cabelo que ainda lhe restavam, e aproveitou a mesma espuma para ensaboar-se. Sentiu uma ardência quando a espuma lhe correu na virilha. Olhou para baixo, suas pernas estavam ensanguentadas.
            Sorriu.
            Caiu em desespero. Entrou em choque. No toca-fitas, (sim, ela tinha um toca-fitas no banheiro), Jim Morrison remoía The End. E ela, bem, ela ficou ali parada vendo o seu sangue alagar o piso branco, ao invés de sair pra buscar ajuda. AINDA HAVIA TEMPO. Desligou o chuveiro, sentou-se no chão com dificuldade. Apertou o play e, em questão de segundos, sua vida passou-lhe pelos olhos.
            Pensou em levantar-se. era tarde demais. NÃO HAVIA MAIS TEMPO para a cura. Ou talvez, a cura tivesse acabado de começar.
            O ralo não escoava mais sangue à estas alturas. Restava um último sopro de vida no banheiro branco - agora vermelho. Por um momento, riu. Sua morte estava sendo como pensara há cinco minutos atrás. Porém, com muito mais adrenalina, ou pouca. Ela nunca soube ter opiniões.
            Respirou fundo. Fez uma pausa e largou pras paredes vivas "Eu amei a mim e a você menos que deveria...Mas amei com o que pude, com o que fui capaz." Fechou os olhos e descansou.
           -Uma morte clichê- diria eu. Mas ela era tão original que era até pecado lhe atribuir uma coisa dessas.
           Por fim, restou um toca-fitas desvairado que só tocava uma única música. Uma toalha seca, pendurada na fechadura da porta. Um chão coberto de sangue. Um corpo encostado na parede. Uma mente vazia. E um punhado de sonhos abortados involuntariamente. Ou não.



D.F.

Nenhum comentário:

Postar um comentário